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O EVANGELHO SEGUNDO ESCREVEU SATANÁS

Certo dia, tive uma visão dantesca: um lugar obscuro, rodeado de névoas, e duas árvores com vários frutos postas acima da calçada. Uma rua onde não se podia ver nada além daquele pedaço lúgubre de luz — luz essa que eu não sabia quem a mantinha acesa, pois não havia energia alguma para fazê-lo, tampouco candeeiro. Era uma espécie de lampião antigo, agarrado a um poste.Naquela penumbra, vi de forma embaçada a face de um demônio que se apresentava de maneira clara para mim e me desafiava com seu olhar tosco e frio. Mordia os lábios ao falar e não tinha aparência definida: às vezes eu o via como sendo um homem escuro, às vezes, na silhueta da luz, percebia traços de um ser escamoso. Outras vezes, não conseguia ver nada — apenas ouvi-lo. Esse infame tinha uma voz rouca, que também mudava conforme sua face se transformava.Tive a impressão de que, algumas vezes, ele sabia que eu estava ali e me observava, tentando sondar meus pensamentos. Senti pavor daquela cena, mas não conseguia desviar o olhar de forma alguma. E não havia quem me socorresse.O clima mudou de repente para uma tempestade sem precedentes: raios caíam ao meu redor e uma nuvem negra cobriu todo o céu. Os relâmpagos pareciam vozes, e o chão se abalava, abrindo rachaduras aos meus pés. Meus pés estavam trêmulos, eu suava frio, apavorado. Tentei clamar o nome de Cristo, mas fui impedido de fazê-lo. Apenas no coração eu podia invocar o nome do Senhor. Porém, todas as vezes que pensava no nome de Jesus, ouvia uma voz soar em meu ouvido:

— “Ele não pode te ouvir aqui.”

Quando já estava prestes a desistir da vida, tamanho o desespero que havia se abatido sobre mim, senti um queimor no coração como nunca havia sentido — nem mesmo em estado de vigília. Foi então que decidi me acalmar e dar atenção à conversa do demônio.O demônio era um dos piores na hierarquia espiritual. Seu nome era Nefasto, cujo significado ia muito além do próprio nome, pois tinha a conotação de “opor-se a tudo o que Deus faz” ou “se levantar contra”. Mas, além disso, descobri em sua conversa que ele não falava apenas de oposição; muito pelo contrário, falava sobre uma aliança, uma semente, um plantio. Ele ditava a um escrivão que estava ao seu lado, com uma caneta na mão, escrevendo tudo em uma tábua de cortar carne — suja e cheia de moscas ao redor. Esse ajudante se chamava Injúria. Sua face não vi, pois estava de costas, mas parecia a de um homem comum.

Então, Nefasto começou a ditar as seguintes palavras:

Nefasto, servo das trevas, chamado para apóstolo, separado para o evangelho de Satanás.

O qual antes prometeu pelos seus falsos profetas nas escuras escrituras.Acerca de seu anticristo que…

— O senhor tem certeza de que devo escrever assim? — interrompeu o escrivão. — Não seria melhor usar uma linguagem mais popular?

— Tem razão, Costela Oca — respondeu Nefasto. — Vai parecer que estou imitando a carta do nojento Paulo aos Romanos! Escreve aí então!

“Do centro da cidade de Segunda Rocha Ferida, para todos os da tribo Nidus e a todos quanto esta carta chegar. Escrevo esta carta atrasado, mas ainda a tempo de lhes mostrar qual é a nossa vontade, já que vocês aí embaixo parecem não ter entendido muito bem a vontade do nosso pai. Muito embora sejamos reis da mentira, o que vou lhes dizer agora é a mais pura verdade (se é que um demônio pode falar a verdade).As nossas regras nunca foram certas, mas temos ordenanças claras do nosso rei: influenciar de dentro para fora. Não como em outros tempos, infiltrando e plantando joio, mas criando o nosso ninho. Por isso o nome da nossa tribo é Nidus.

Agora, recebi uma mensagem de um escalão maior do que eu, para que possamos intensificar as forças e furar esse bloqueio que tem nos impedido. Fizemos uma reunião e já está decidido: vamos acampar ao redor, vamos fazer alianças e vamos de tudo para não sermos descobertos de forma alguma.Nesta primeira carta, trago os Dez Mandamentos da Tribo.

”1º Mandamento .

Devem odiar e se levantar com toda força contra esse tal Pentecostes que ainda resiste. Precisam se unir contra os crentes saudosistas, que ainda leem a Palavra diretamente. São os chamados “pobres de espírito” — esses são muito perigosos! A maioria é de analfabetos, mas crê veementemente em tudo que lhes dizem. Sentam-se nas igrejas e não estão preocupados com o dia de amanhã, nem se vão subir de cargo. Não se metem na vida dos outros, não se importam com o que falam contra sua igreja nem contra seu pastor.Esses devem ser os primeiros que vocês vão influenciar. Não tenham dó deles: entrem com tudo, arrebentem as portas! Eu proponho que tragam para a vida deles embaraços e pecados. Façam-nos olhar para outro lado, desacreditarem desta geração. Esfriem-nos de tal modo que se tornem reclamões, resmungões, incrédulos. Façam-nos deixar de lado o primeiro amor, viver apenas de saudades, presos ao passado, sem mover uma palha para resolver qualquer questão espiritual.Incrédulos em seus corações, deturpem seu olhar para as coisas de Deus. Deixem-nos ociosos, fofoqueiros, faladores da vida alheia. Soprem em seus ouvidos que não precisam estar todos os dias nos cultos e que podem simplesmente fazer escalas.

”2º Mandamento . Devem lutar contra os que ensinam a Palavra com zelo e sem interesses. Eles ainda têm coragem de falar de santidade, de pecado, de arrependimento e de cruz. Estes são os mais perigosos para nós, pois conseguem abrir os olhos dos outros e despertar os que já estavam adormecidos. Façam de tudo para confundir o entendimento desses pregadores, tragam dúvidas, plantem heresias sutis em suas mentes, usem a vaidade de seus próprios corações contra eles.Sugiram-lhes fama, prometam-lhes reconhecimento, e quando eles aceitarem, usem isso como isca para derrubá-los. Transformem suas bocas em fontes de arrogância, façam-nos esquecer do joelho dobrado e do quarto secreto.

3º Mandamento. Devem desmoralizar a família cristã. Trabalhem para destruir casamentos, instiguem adultério, promovam a pornografia e incentivem o egoísmo. Se conseguirem corromper as famílias, terão atingido a base da fé deles. Façam os filhos se levantarem contra os pais e os pais se esquecerem de seus filhos. A confusão dentro de casa sempre refletirá dentro da igreja.

4º Mandamento. Devem esfriar os corações nos cultos. Façam com que os crentes cheguem atrasados, cansados, distraídos. Transformem o momento da adoração em rotina, sem fervor. Soprem nos ouvidos que não é necessário levantar as mãos, chorar ou se emocionar. Façam-nos cantar apenas por cantar, pregar apenas por pregar. Se conseguirem tirar o fogo do altar, terão vencido.

5º Mandamento. Devem implantar divisão entre eles. Espalhem inveja, ciúmes e disputas por cargos e posições. Façam com que pensem mais em quem vai cantar, pregar ou aparecer, do que em servir ao seu Deus. Façam-nos esquecer que são corpo e que dependem uns dos outros. Onde houver unidade, quebrem-na; onde houver amor fraternal, semeiem intrigas.

6º Mandamento. Devem transformar a oração em mera formalidade. Façam-nos crer que podem viver apenas com palavras ensaiadas, sem intimidade. Tornem a oração fria, repetitiva, vazia. Se eles não falarem mais com o Pai, o elo se quebra e nós ganhamos espaço para agir.

7º Mandamento. Devem tornar a Bíblia um livro esquecido. Coloquem dúvidas sobre sua veracidade, façam parecer ultrapassada. Distraíam-nos com tecnologias, redes sociais e preocupações. Façam-nos perder horas diante das telas, mas não suportarem quinze minutos de leitura das Escrituras. Quando a Palavra se afasta deles, sua fé enfraquece.

8º Mandamento. Devem atacar os líderes. Se não puderem derrubá-los em pecado, façam-nos cair em cansaço e desânimo. Façam-nos acreditar que estão sozinhos, que não têm apoio. Coloquem pessoas falsas ao redor para bajulá-los e, na hora certa, traí-los. Um líder caído arrasta muitos com ele.

9º Mandamento. Devem ridicularizar a fé diante do mundo. Façam com que os descrentes vejam os cristãos como fanáticos, hipócritas e tolos. Criem escândalos públicos, espalhem mentiras e zombarias. Façam os crentes se envergonharem de testemunhar e, assim, calem suas bocas.

10º Mandamento. Devem imitar tudo o que a igreja faz, mas distorcendo o propósito. Criem músicas, mas sem unção. Criem templos, mas sem presença. Criem pregadores, mas que busquem apenas aplausos. Façam cópias baratas de tudo o que é santo, para confundir os que buscam. Assim, muitos pensarão estar servindo ao Altíssimo quando, na verdade, estarão nos servindo.E assim terminou a primeira carta de Nefasto, o apóstolo das trevas, para a tribo Nidus. Seu escriba, Injúria, registrou tudo naquela tábua imunda, e as moscas, como testemunhas, sobrevoavam como se celebrassem cada mandamento.Meu coração queimava dentro de mim, e percebi que aquela visão não era apenas um pesadelo, mas uma revelação do quanto o inferno trama contra a igreja de Cristo.

O Último Reflexo no Lago

— Já é tarde, Mendes, meu filho, não demore aí fora.

Dona Joana falou carinhosamente, mas retrucou com aquele tom que só as mães dominam. Mendes estava recostado sobre uma mesa velha, dessas feitas para reunir a família nas refeições e festas.

Escrevia uma carta. Já imaginava o franzir da testa da amada, o rubor em seu rosto ao ler aquelas linhas. A carta estava pronta, mas faltava o título — como um livro sem arremate, como uma pintura sem assinatura.

Quase podia sentir o perfume dela. O toque. Mas era a primeira vez que criava coragem para escrever e havia levado horas para compor uma única frase.

Nos últimos três dias, a carta dormira numa gaveta, dentro de uma caixa de sapatos, escondida a sete chaves. Agora, diante dela novamente, flutuava no mar das angústias de apaixonado, quando a voz da mãe o arrancou do transe.

— Já vou, mãe! — respondeu.

Mas no coração, dizia outra coisa.

Já se levantava para obedecer quando as nuvens se abriram, e a lua iluminou a mesa. Sentiu o impulso voltar. Sentou-se outra vez e escreveu:

Para minha lua.


Salvador, quinta-feira, nove de setembro de 1980.

Vos escrevo, minha amada, porque não encontro coragem de lhe olhar nos olhos…

(a carta segue como no texto original, intacta, mas agora com respiros visuais para facilitar a leitura)


Antes de terminar, a voz da mãe cortou o silêncio do jardim:

— Timote Jeremy Renner Mendes!

O pai completou, em tom baixo:
— Para sua sorte, temos visitas… senão eu ia até aí com minha cinta. Entre logo e venha conhecer nossos novos vizinhos.

Mendes entrou.
— Surpresa!

Bolo. Presentes. Três pessoas no sofá — os pais dela e a irmã mais velha. O coração acelerou. Ela só podia estar ali.

Procurou. Nada.

Saiu para a varanda. O lago refletia a lua. Ouviu a música, os risos, mas também algo diferente:

— Se ela estivesse entre nós… hoje completaria quinze anos — disse Oséias, o pai dela.

Então, um grito. Uma corrida. Um estalo. E o som pesado no lago.

Na festa, deram falta do aniversariante.


Escrito por Noel Souza


O GRANDE ENCONTRO

Noel Souza

Na Terra do Saber, como de costume após o término de alguns milênios, mais precisamente na antessala da Dona Eternidade, se faz uma reunião que não tem data marcada, mas tem momento certo de acontecer. Esta sala fica localizada entre as regiões de Cronos e do Cosmos e é do tamanho necessário para cada instante. Há nesta sala uma mesa de madeira retirada do bosque do Sucesso, feita sob medida, e tem o mesmo tamanho da dona da casa. Foi talhada com o machado da Experiência, o martelo da Dor e o escopo da Humildade.Aos poucos os convocados foram chegando à reunião, entrando e se acomodando, já que não existe arauto, nem atalaia, nem proclamador para os anunciar, pois todos se conhecem, do maior ao menor. Todos se assentam à mesa circular, cujas cadeiras mudam de posição propositalmente sem que os acomodados precisem se levantar.Os primeiros a chegar foram: o Espírito, a Vida e o Conhecimento. Como sempre, adentraram o salão de mãos dadas. São conhecidos como inseparáveis; já chegaram a chamá-los de trigêmeos.Em seguida, a Razão e a Compaixão. Logo atrás deles, o Tempo e a História vinham aos berros, discutindo sobre quem deveria entrar primeiro, quebrando o retrato do Silêncio que havia na parede da Existência.Devo lhe alertar que a Pobreza, a Solidão, a Saudade e a Tristeza também foram conclamadas a comparecer à reunião extraordinária, de modo que, quando a porta se fechou, a Sala Eterna estava repleta de sentimentos, reações, consequências, emoções e tudo o mais.Estava quase tudo pronto para realizar a cerimônia quando deram por falta de mais um: o Amor. Não sabemos em qual classe ele deve ficar, pois parece ser uma mistura de sentimentos. Às vezes aparece como consequência, por tempos se apresenta em destaque na forma de paixão, e há quem diga que já viu este sujeito andando agarrado à família da Reciprocidade.De repente, todos procuravam este menino que não se sabe a idade. A única coisa que posso lhe dizer é que ele se apresenta, para cada um, de um tamanho diferente. E, desta vez, ele veio se escondendo, brincando consigo mesmo, sorridente e como se não tivesse pressa nem compromisso. Conversava sozinho pela Estrada da Alma.Todos o procuravam porque, sem ele, não se pode começar nada. Apesar de ser uma criança levada, ele é o único que pode alegrar aquele ambiente. E encontraram-no. Eu não sei quem foi, mas tenho a impressão de que ele é quem quis mostrar-se. Há quem diga que o Ódio foi quem o encontrou. E ainda bem que o encontraram logo, porque o senhor Tempo já estava apresentando sinais de variações. E, quando isso acontece, ele se irrita e vai embora — até porque é um dos poucos neste concílio que não se assenta, não se aquieta, não dorme, não para por nada. Isso porque ele traz consigo um sinal de inquietude tatuado no rosto.Mas, mesmo com o Amor presente, algo ainda parecia suspenso. Faltava densidade, faltava confronto, faltava verdade.Foi quando a porta rangeu outra vez, e uma sombra densa atravessou a soleira: a Culpa. Entrou cabisbaixa, mas com presença. Alguns desviaram o olhar. A Compaixão se levantou para recebê-la, mas o Conhecimento apenas a observou em silêncio.Logo atrás dela surgiram mais figuras.O Perdão, em passos lentos, como quem não tem pressa de ser entendido. Carregava nos ombros um manto puído, porém leve. A Saudade o reconheceu de imediato e lhe cedeu espaço.O Medo veio encolhido, olhando para todos os lados. Tinha olhos grandes e um corpo pequeno. A Tristeza o saudou com um aceno — velhos conhecidos.A Fé chegou envolta em véu. Não precisava ver para saber. Sentou-se ao lado do Espírito sem dizer palavra, apenas assentindo com o coração.A Esperança, quase imperceptível, flutuava entre os lugares, como se tivesse estado ali o tempo todo, mas só agora fosse notada. Sentou-se ao lado da Pobreza, e ali brilhou levemente.Por fim, o Desejo entrou. Descalço, inquieto, com os olhos cheios de mundos ainda por nascer. Sentou-se entre a Razão e a Paixão, sorrindo enigmaticamente.E então, quando tudo parecia alinhado, o Orgulho bateu à porta — mas recusou-se a entrar. Disse que não se sentaria em roda, e ficou do lado de fora, murmurando para si mesmo. A Humildade, do seu lugar, apenas sorriu.Agora sim, a Sala Eterna estava completa. E todos sabiam, sem que ninguém precisasse dizer, que aquele seria o encontro mais longo da história da existência — pois todos os presentes estavam ali para decidir o destino da alma humana.

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