Feliz Aniversário

O telefone tocou num domingo pela manhã, quando todos haviam ido à missa, exceto Sóstenes — um velho de mais de oitenta anos que vivia a reclamar da vida.

— Fale logo, não tenho o dia todo! — disse o velhaco com intrepidez.

— Tenho uma novidade para contar — respondeu mansamente a voz do outro lado.

— Problema seu. Não lhe perguntei nada — resmungou o idoso.

— Deixe de grosseria! Nem vai perguntar quem é? — retrucou a voz.

— Pra quê?

— Ora, quando o telefone toca se diz “alô” e se pergunta quem fala… o senhor nunca atendeu um telefone?

— Pois bem, o telefone é meu e eu atendo como quiser.

— Então está bem, mal-educado. Agora não lhe conto a novidade.

— Problema seu! Até bom, porque já tomei raiva da sua cara e olha que nem sei seu nome ainda.

O velho finalizou a ligação, batendo o telefone com força. Após essa conversa desagradável, saiu da sala em direção à varanda, praguejando:

— Maldito seja Alexander Graham Bell, anátema seja esse maldito aparelho! E toda essa ordinária tecnologia! Ligam para mim e ainda querem me dar ordens? Pois não atenderei mais nenhum telefonema!

Assentou-se numa cadeira preguiçosa que lhe parecia desconfortável, esmurrando-a na tentativa de torná-la mais cômoda. Era cedo, por volta das nove da manhã. O velho ainda não havia feito a primeira refeição, mas já havia baforado seu charuto matinal.

Inquieto, mudou-se para a rede, o mais distante possível da casa. Em instantes começou a observar as nuvens que se moviam. De repente, parecia que ia chover de novo — há dias chovia muito e forte. Não demorou e já gotejava-lhe na testa enrugada. A chuva o pegou em cheio. Desceu da rede correndo e voltou para casa, resmungando sozinho, tateando pelos móveis, reclamando da idade e de já não enxergar direito.

— Odeio chuva, odeio domingo, odeio inverno! Vão para o diabo com a missa de vocês, com os telefones e com essas cadeiras! Vão para a peste da peste!

O telefone tocou novamente. Ele tentou correr para atender, pensando em despejar mais impropérios. Mas tropeçou numa poltrona e blasfemou aos berros:

— Maldita seja, Zeza! Velha cega! Sabe que eu não enxergo e me põe esta praga no meio do caminho? Tomara que lhe caiam as mãos na próxima vez que cometer esse crime! Assassina de canela de velho! Vou denunciá-la por maus-tratos! E essa máquina maldita também, que não para de tocar! Já disse que já vou! Você é surdo? Não gosto de dizer “alô” e muito menos de perguntar “quem é”!

Do outro lado, a voz respondeu:

— Alô! Sóstenes?

— Ruuuunh… — resmungou o velho rancoroso, alisando a canela machucada.

— Gostaria de falar com o senhor Sóstenes Demétrio Viega, por favor.

— Fale logo que já estou nervoso de tanta ligação!

— Calma, meu velho. Tenho uma notícia para lhe dar.

— Deixe de ensebamento, infeliz!

Do outro lado, ouviu-se uma gargalhada assombrosa.

— Tem certeza de que não quer saber quem fala?

— Isso vai mudar alguma coisa? — gritou o velho.

— Não exatamente — respondeu a voz, agora mais grave e enérgica.

— Então, insuportável, dê a notícia ou desligue, seu imbecil!

— Está certo, então. A notícia é que comprei sua passagem hoje e estarei passando aí para lhe buscar logo mais, exatamente às 14h32, assim que terminar de almoçar, quando o povo chegar da missa.

O telefone ficou mudo.

— Passar aqui pra quê? Ir pra onde? Que piada é essa?!

Ele se assentou ao pé do telefone, sem entender nada. Lá fora, a chuva caía aos baldes, o vento soprava forte contra a porta da frente.

A família chegou às 13h30. O velho já estava escorado no sofá, coberto com dois cobertores. Suas netinhas gêmeas pulavam por cima dele, ensopando o sofá e o tapete. Puxavam sua barba e ele, finalmente, abriu um sorriso, mostrando a falta de metade dos dentes. Riam e faziam cócegas, gritando com um embrulho nas mãos que parecia ser um presente.

— Parabéns, vovô! — disseram elas, sem que o velhaco se lembrasse de que era seu aniversário.

Sóstenes logo associou as ligações que o incomodaram desde cedo àquela notícia.

— Meu aniversário, claro! Como pude me esquecer?

Pela primeira vez em muitos anos, sorriu de verdade, afagando as netas e agradecendo pelo presente. Subiu devagar as escadas, trocou a roupa molhada, vestiu a melhor que tinha, pegou uma mala que há muito cheirava a naftalina e jogou dentro alguns papéis, seu documento e uma foto antiga de sua última viagem. Desceu com um gorro de Natal, um cachecol colorido feito pela finada esposa e suas sandálias de couro.

— Pronto para a viagem! — disse, descendo as escadas.

Zeza, a cozinheira, largara o terço e acendia o fogo para preparar o almoço atrasado pelo temporal. O genro acendia o lampião, pois já havia mais de uma semana sem energia elétrica na região. A lareira foi acesa para alegria das crianças. O cheiro do lombo bovino no tempero invadia a casa.

— Papai, se mamãe estivesse viva não lhe permitiria comer essas coisas fortes. Não abuse, é só hoje, viu? — disse a filha, arrumando a mesa, sem notar as malas do pai.

O velho tossiu secamente, resmungando que ninguém mandava nele — nem vivos, nem mortos. As meninas gritavam:

— Comida, comida, comida!

Em meio a trovões e relâmpagos, o almoço começou. O rádio de pilha chiava, com o locutor falando sobre o clima e anunciando as horas entre músicas internacionais.

Sóstenes comia como se nunca tivesse se alimentado na vida.

— Eu já estava morrendo de fome… Deve ser o horário, o frio ou a raiva que vocês me fizeram passar hoje!

— Raiva? Que raiva, vovô? — perguntou uma das netas.

— Vocês me ligaram a manhã inteira! Não vem que não tem, não me enganam! Não sou besta!

— Como assim te ligamos? — falou Jorge, o genro, repelindo a acusação.

— Ora, quem mais saberia meu nome completo e endereço? E que vocês estavam na missa? E sobre meu aniversário? Sei que foram vocês!

Zeza entrou com o termômetro.

— Trinta e oito graus de febre! Minha nossa!

— Não é nada! Eu só descobri a surpresa que vocês iam me fazer! Pensam que sou bobo? E aquela história de viagem?

— Que viagem, papai? Que telefonema? — perguntou a filha, preocupada.

Chamou o esposo ao canto e cochichou:

— A febre está alta… Nosso telefone nós vendemos há três anos, logo após a morte da mamãe. E como íamos ligar, se não tem energia elétrica?

Antes que pensassem em como contar ao idoso que talvez estivesse delirando, o locutor bradou:

— São exatamente 14 horas e 32 minutos. A temperatura segue em dez graus e, apesar da chuva recuar, a previsão é de mais frio.

Ao ouvir as horas, o velho gesticulou, apontando para o rádio. Engasgou-se com o bocado de comida, tossiu e caiu roxo sobre a mesa, sufocado.

Os netos gritavam, a cozinheira suava, a filha chorava, o genro o sacudia…

E o velho morria.

Noel Souza